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A educação no contexto da mobilidade internacional e das políticas migratórias

Education in the context of international mobility and migration policies

A intensificação da mobilidade e a diversificação das migrações, em nível internacional, têm desafiado os sistemas e as instituições de ensino de muitos países receptores de migrantes. Não são poucos os lugares onde cresce o número de estudantes migrantes ou com um background migratório, oriundos de países com culturas e idiomas cada vez mais diversificados.

O crescimento numérico pode ser também acompanhado por uma maior visibilidade. De fato, em contextos marcados pela segregação espacial, as instituições de ensino são lugares onde, não raramente, a presença de não-nacionais se torna mais perceptível e habitual, trazendo desafios e, ao mesmo tempo, oportunidades para todos os envolvidos.

A inclusão de estudantes migrantes nas instituições de ensino é condicionada por um conjunto de variáveis relacionadas ao próprio sistema educacional, mas também ao contexto social, político, econômico e, sobretudo, migratório. Neste parco espaço de introdução ao dossiê da REMHU 68, sobre o tema “Desafios educacionais da mobilidade humana”, quero destacar alguns aspectos contextuais que, na minha visão, interferem profundamente nos espaços educacionais que lidam com a presença de pessoas migrantes e refugiadas.

Em primeiro lugar, é fundamental atentar para as políticas migratórias e a disseminação de um ethos xenófobo e etnocêntrico. Mesmo levando em conta as peculiaridades de cada contexto, cresce o número de países com legislações e políticas migratórias marcadas por um viés claramente securitário, seletivo e criminalizante. A multiplicação de fronteiras (Foucher, 2009FOUCHER, Michel. Obsessão por fronteiras. São Paulo: Radical Livros, 2009.) materiais e imateriais atesta uma intencionalidade em selecionar rigorosamente os que entram e, mais que isso, em promover uma “inclusão diferencial” (Mezzadra, 2015MEZZADRA, Sandro. Multiplicação das fronteiras e das práticas de mobilidade. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 23, n. 44, p. 11-30, 2015.), caracterizada por relações assimétricas e hierárquicas entre nacionais e não-nacionais. Tais fronteiras - aqui entendidas como barreiras - não são erguidas apenas nas divisas entre os estados (muros e cercas), mas também antes delas (a externalização das fronteiras) e, sobretudo, depois delas, as “barreiras internas”, a saber, as barreiras burocráticas, administrativas e legais que, de fato, impedem, dificultam ou, por vezes, tornam “subordinada” ou “inferiorizada” a permanência das pessoas não nacionais no território. Uma das principais barreiras internas é, sem dúvida, a (não) regularização migratória, que produz pessoas deportáveis (De Genova, 2002DE GENOVA, Nicholas. Migrant “illagality” and deportability in everyday life. Annu. Rev. Anthropol., n. 31, p. 419-447, 2002.) e sem direitos; mas os sistemas e as instituições de ensino, a princípio, também podem ser moldados como barreiras com vistas a promover relações assimétricas e excludentes.

Por sua vez, a multiplicação de barreiras influencia e é influenciada por um “clima” de desconfiança e hostilidade em relação aos recém-chegados, frequentemente estigmatizados como “terroristas”, “criminosos”, “aproveitadores” dos recursos alheios, “vetores de doenças” ou, mais simplesmente, como “outros”, no sentido de não pertencentes à comunidade nacional e, portanto, não confiáveis (Bauman, May, 2010BAUMAN, Zygmunt; MAY, Tim. Aprendendo a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.). Nesse ethos a “diferença”, em todas as suas vertentes, é utilizada como legitimadora da “desigualdade” em termos de direitos (Todorov, 1985TODOROV, Tzvetan. A conquista da América. São Paulo: Martins Fontes, 1982., p. 143ss).

Portanto, debater os desafios educacionais em contextos de mobilidade humana assume conotações diferentes dependendo das características do ethos e das políticas migratórias presentes no país de referência. Por exemplo, a abordagem interpretativa das migrações como fenômeno temporário e, portanto, não estrutural - muito difundida em contextos que naturalizam a relação entre Estado e nação - dificulta a criação de políticas educacionais voltadas, por exemplo, para a interculturalidade ou a reformulação de conteúdos curriculares e processos avaliativos com vistas a superar o etnocentrismo.

Além disso, é determinante também a abordagem interpretativa que se tem dos sistemas de ensino. Há diferentes enfoques teóricos sobre o papel da educação, sobretudo aquela pública e obrigatória, no contexto do Estado-nação. Algumas abordagens entendem os sistemas educacionais institucionalizados como instrumentos para adaptar ou disciplinar os “novos cidadãos” - principalmente os jovens “autóctones” - à convivência e aos valores da sociedade, visando garantir a “continuidade” intergeracional e a reprodução (conservação) da sociedade. Em contextos marcados pelo forte nacionalismo, esse processo adaptativo ou coercitivo tende a naturalizar a relação entre o Estado e uma determinada nação. Nas palavras Bauman e May (2010BAUMAN, Zygmunt; MAY, Tim. Aprendendo a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010., p. 227), a “universalização da educação permite a todos os habitantes do território do Estado treinamento nos valores da nação que o domina. Com variados graus de sucesso, busca-se realizar, na prática, o que foi solicitado na teoria, a saber, a ‘naturalidade’ da nacionalidade”. A coerção da educação obrigatória é o instrumento principal, ainda que não o único, para garantir a conservação do Estado-nação diante da entrada de “estrangeiros” de outras nações. A assimilação e o etnocentrismo, ainda que velados, representam a prioridade pedagógica na ótica dos grupos soberanistas e nacionalistas (Bauman, May, 2010BAUMAN, Zygmunt; MAY, Tim. Aprendendo a pensar com a sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010., p. 227-229).

Outras abordagens teóricas, ainda mais questionadoras, interpretam os sistemas de ensino num viés ideológico, como instrumentos para legitimar as desigualdades sociais e reproduzir as normas da sociedade hierarquizada assim como imposta pelo domínio de uma classe social. Em outros termos, os processos formativos, aparentemente neutros, visariam promover a internalização de normas e a aceitação dos processos de inferiorização e exclusão presentes na sociedade (Freitag, 1980FREITAG, Barbara. Escola, Estado & Sociedade. São Paulo: Moraes, 1980.), o que, no nosso caso, abarcaria também a “inclusão diferencial” de pessoas migrantes ou com background migratório.

Cabe, no entanto, citar também uma abordagem interpretativa que realça uma função mais positiva que a educação pode aportar. Numa perspectiva gramsciana, a classe dominante não busca a hegemonia, em âmbito educacional, através da violência direta (só em casos de ditaduras), mas garantindo um grau, ainda que limitado, de liberdade, “para que os indivíduos das classes subalternas façam suas opções de forma aparentemente livre” (Freitag, 1980FREITAG, Barbara. Escola, Estado & Sociedade. São Paulo: Moraes, 1980., p. 42). É justamente nesses interstícios que é possível desencadear processos contra-ideológicos de educação problematizadora e libertadora (Freitag, 1980FREITAG, Barbara. Escola, Estado & Sociedade. São Paulo: Moraes, 1980.; Freire, 1985FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.).

No caso específico da relação entre instituições de ensino e pessoas migrantes e refugiadas, acredito seja um pouco ilusório pensar que os mesmos Estados, que promovem políticas migratórias restritivas, seletivas e, em alguns casos, até necrófilas, impulsionem, ao mesmo tempo, no âmbito educativo, políticas de inclusão simétrica na ótica da interculturalidade e dos direitos humanos. Ainda assim, complexificando a reflexão, precisa levar em conta também a heterogeneidade dos interesses envolvidos. Se as tendências nacionalistas fomentam processos de naturalização da relação entre Estado e nação, por outro lado há interesses econômicos que prezam pela formação de mão de obra qualificada a fim de suprir as exigências do mercado de trabalho (Zanfrini, 2016ZANFRINI, Laura. Sociologia delle migrazioni. Bari: Laterza, 2007.), sobretudo em contextos de expressivo envelhecimento populacional e baixa natalidade1 1 Cabe lembrar que a necessidade de mão de obra qualificada é acompanhada, não raramente, pelo interesse em ter também mão de obra subalterna e submissa. . Ademais, na ótica da “razão humanitária” (Fassin, 2019FASSIN, Didier. Ragione umanitaria. Una storia morale del presente. Roma: DeriveApprodi, 2019.), há também certos interesses em conservar um discurso humanitário, ainda que aparente ou superficial, como capital simbólico essencial para se diferenciar e alimentar a narrativa de contraposição aos povos ou grupos considerados bárbaros.

Finalmente, não pode ser menosprezado o papel da sociedade civil solidária, que, mesmo quando minoritária, muitas vezes consegue pautar e desencadear processos de transformação na ótica dos direitos humanos. Isso, por vezes, ocorre nos diferentes “âmbitos discricionários”, ou seja, naquelas situações em que a aplicação da norma é mediada pela interpretação do sujeito ou em que determinadas carências de orientações e suportes sistêmicos são compensadas pela agência das pessoas envolvidas. Nessas situações, não raramente, processos de educação problematizadora e libertadora são fomentados por iniciativas individuais ou coletivas, inclusive pelo agenciamento de pessoas migrantes e refugiadas2 2 Ainda que louváveis e às vezes eficazes, essas iniciativas de indivíduos ou grupos da sociedade civil não podem e não conseguem suprir plenamente as responsabilidades dos estados. Neste sentido, entendo que a sociedade civil organizada e os próprios coletivos migrantes devem priorizar ações que visem mudanças legislativas e políticas públicas transformadoras, inclusive mediante um trabalho de base para oferecer narrativas alternativas sobre migrações e mobilidade e, desta maneira, desnaturalizar as abordagens nacionalistas e etnocêntricas. .

Em suma, mesmo levando em conta os diferentes enfoques teóricos, assim como as numerosas variáveis envolvidas - inclusive os distintos níveis de ensino, a diferença entre as instituições públicas e privadas ou, também, os níveis de investimento público diante da agenda neoliberal -, é legítimo pensar na presença de interstícios (Bhabha, 1998BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.) nos quais é possível agir a fim de desencadear abordagens problematizadoras e libertadoras, focadas nos direitos humanos e na interculturalidade, objetivando, de forma específica, promover a inclusão simétrica e a mobilidade social dos recém-chegados e, ao mesmo tempo, habilitar os “nacionais” ao encontro com a alteridade, a fim de evitar derivas nacionalistas e ufanistas.

O que é fundamental asseverar é que a educação não pode ser interpretada e usada como uma “barreira interna”, como um instrumento para reforçar as políticas migratórias restritivas e seletivas ou, inclusive, como dispositivo para inferiorizar os recém-chegados, criando uma população de segunda categoria ou uma casta inferior, dócil e submissa, no interior do tecido social. Utilizando as palavras de Martha Nussbaum, antes que gerar “máquinas dóceis”, o objetivo da educação é formar “cidadãos plenos, capazes de pensar por si próprios, de criticar a tradição e de compreender o significado do sofrimento e das necessidades dos outros” (2011NUSSBAUM, Martha. Non per profitto. Perché le democrazie hanno bisogno della cultura umanistica. Bologna: Il Mulino, 2014., p. 21-22, tradução minha).

As contribuições do Dossiê

O dossiê da REMHU n. 69 apresenta um conjunto de olhares interdisciplinares sobre realidades concretas em que o universo da mobilidade humana interage com sistemas e instituições de ensino. Em termos gerais, os artigos, mesmo referentes a países e contextos diferentes, apontam desafios que evidenciam situações de desvantagem (Zanfrini, 2016ZANFRINI, Laura. Sociologia delle migrazioni. Bari: Laterza, 2007.) e de discriminação contra os estudantes migrantes, sendo que a questão da nacionalidade geralmente se intersecciona com outros marcadores sociais e produz efeitos bastante negativos, como atestado por alguns indicadores: dificuldades de acesso ao sistema educacional do país de chegada (por vezes por causa da documentação migratória e escolar); maior evasão, em comparação aos nacionais; frequência em instituições de ensino de menor prestígio; baixo rendimento escolar (sobretudo entre os de sexo masculino); reduzida presença de estudantes migrantes na formação em nível universitário, entre outros.

No primeiro artigo do Dossiê, Célia Regina Vendramini e Fabio Perocco abordam algumas questões desafiadoras do percurso formativo de migrantes na Itália. O artigo atenta para os desafios do sistema educativo e sua necessidade de atualizar o trabalho pedagógico, mas também para os desafios inerentes à situação migratória dos estudantes, assim como à classe social, ao grupo étnico-racial ao qual pertencem, à nacionalidade e, inclusive, à idade dos sujeitos. Embora haja um conjunto de iniciativas que visam a domesticação dos recém-chegados, os autores reconhecem que as instituições escolares podem constituir também um “espaço de participação ativa da população imigrante na vida escolar para pensar coletivamente os rumos da organização do trabalho pedagógico, dos programas curriculares e da socialização na escola”.

Sempre em relação à situação italiana, Paolo Morozzo dela Rocca, com um enfoque jurídico, enfrenta a dialética entre acolhida de estudantes oriundos de países não-europeus e as políticas securitárias. Por um lado, há necessidade de trazer estudantes imigrantes, sobretudo num contexto de envelhecimento populacional e de baixa natalidade; por outro, há o assim chamado “risco migratório”, baseado no medo dos recém-chegados. Assim sendo, apesar das orientações europeias que incentivam ingressos por motivo de estudo, há entraves administrativos e burocráticos que dificultam a chegada e a permanência de estudantes não europeus. O artigo confirma como o universo da educação é profundamente condicionado pelo clima securitário, desperdiçando, assim, importantes recursos, tanto para o país de recepção quanto para os países de origem.

F. Javier García Castaño, María Rubio Gómez e Elvira Molina Fernández atentam para a diversificação da gestão da migração no interior de um mesmo país. O caso em tela é a Espanha, onde as dezessete Comunidades Autônomas possuem competência e autonomia em matéria escolar a partir de normas gerais do Estado. Diante disso, refletindo sobre a presença de migrantes internacionais/estrangeiros na Educação Especial, o/as autor/as demonstram, através de dados oficiais referentes a três Comunidades (Andaluzia, Catalunha e Madri), que há evidências de discriminação por “sobre” ou “sub”-representação de migrantes, tendo inclusive relevantes diferenças entre os vários territórios. A hipótese levantada é que sejam justamente as “políticas escolares diferenciadas entre os territórios e as interpretações das normas a elas associadas” a produzir essa situação.

O artigo de Octávio Sacramento, Elizabeth Challinor e Pedro G. Silva verte sobre os desafios e as respostas diante da presença de refugiados em instituições de ensino obrigatório em áreas periféricas de Portugal (Norte e Centro). Entre vários aspectos, os autores ressaltam a importância da autonomia e da flexibilidade dos institutos educacionais, que permitiu, mediante competência, criatividades e, sobretudo, parcerias, desencadear processos virtuosos para suprir carências estruturais, falta de orientações formais e, inclusive, déficits de recursos pedagógicos e humanos. O texto, por outro lado, ao sublinhar a importância da autonomia das instituições e da “boa vontade” de seus agentes, ressalta também a necessidade de suportes estruturais, sobretudo no que diz respeito aos recursos oferecidos e à formação do corpo docente.

Paula Daniela Fernández e Fernando Romero Wimer refletem sobre reconhecimento ou revalidação de diplomas de educação superior de estudantes e docentes formados fora do Brasil. A pesquisa é realizada em um contexto fronteiriço, na Universidade UNILA, levando em conta as legislações de Brasil, Argentina e Paraguai. Há um conjunto de entraves que os imigrantes encontram para o reconhecimento de seus diplomas, por causa das burocracias, das lentidões, das taxas cobradas ou, inclusive, pela dificuldade de juntar a documentação necessária, sobretudo no caso de refugiados. O texto atenta para o papel que a universidade pode ter em favorecer ou dificultar o processo de integração de imigrantes.

Camila Escudero e Alex Guedes Brum se debruçam sobre uma política pública brasileira junto a migrantes residentes no exterior, focando o Encceja - Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos. O artigo reflete sobre as assim chamadas “políticas de vinculação”, destacando a crescente horizontalidade, intersetorialidade e, sobretudo, as interações societais a partir do progressivo envolvimento de atores não estatais, incluindo as próprias comunidades brasileiras no exterior. Os autores atentam para riqueza e, ao mesmo tempo, os múltiplos desafios da interação de um número tão grande de atores que, por vezes, possuem prioridades e interesses diferentes, e sobretudo para a necessidade de levar em conta as necessidades, sempre mutáveis e contextualizadas, das comunidades brasileiras residentes no exterior.

Sabrina Generali e Denise Cogo refletem sobre práticas educativas interculturais em escolas públicas urbanas de Ensino Fundamental em Boa Vista. As autoras ressaltam o contexto desafiador e, por vezes, xenófobo, a ausência de orientações institucionais ou mudanças curriculares específicas, as carências na formação dos professores, sobretudo no que diz respeito ao conhecimento do espanhol. Além disso, é sublinhada a ausência de políticas educacionais voltadas para a interculturalidade, possivelmente em decorrência de uma interpretação da migração venezuelana como fenômeno temporário, provisório, o que favorece a opção por soluções emergenciais. Em Boa Vista também, como em outros lugares, iniciativas individuais de docentes ou outros funcionários, individuais ou coletivas, acabam tentando, com baixo impacto, compensar a reduzida presença de políticas públicas sobre o tema da interculturalidade.

Conclusões análogas são apresentadas por Paula Luciana Buratovich que analisa os desafios do acesso ao sistema educativo de Argentina e Chile por parte de migrantes, sobretudo venezuelanos. Apesar dos dois países reconhecerem os direitos à educação da população migrante, a “intersección de la condición migratoria con otros factores, como la clase social, el lugar de residencia, el tiempo de arribo al país y el nivel socioeducativo, entre otros, puede generar formas de exclusión específicas y brechas que permanecen ocultas para un análisis limitado a aspectos normativos y de diseño de políticas públicas”. Buratovich também ressalta as responsabilidades dos Estados em superar a mera lógica do acesso (à educação) para focar também a qualidade do acesso oferecido com vistas a eliminar as desigualdades e as discriminações.

O último artigo realça especificamente a questão do idioma, um dos desafios mais citados nos vários textos do dossiê. Thalita Camargo Angelucci reflete sobre a interação e a complementariedade entre a assim chamada “lengua-hogar” e a “lengua-lugar”, o idioma da construção do sujeito e o idioma do deslocamento, que pode ser a segunda língua, a língua estrangeira ou a língua “outra”. A reflexão foca principalmente a dimensão subjetiva e identitária da língua, que não pode ser interpretada como um mero instrumento (neutro) de comunicação. A reflexão aporta interessantes elementos, sobretudo para a formação intercultural do corpo docente em contextos de expressiva mobilidade humana.

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Na seção Artigos, Belén Rojas Silva e Catalina Álvarez Martínez-Conde refletem sobre a relação entre memória e migrações a partir de uma pesquisa com chilenas residentes na região de Paris, na França. Os movimentos migratórios geram memórias que, por sua vez, ressignificam as experiências vividas, o que aponta para uma reciprocidade entre migrações e memórias.

Erika Andrea Butikofer e Andressa Alves Martino refletem sobre discriminações vivenciadas por solicitantes de refúgio negros no Brasil, sobretudo durante o processo de tramitação do pedido de refúgio. Analisando o processo de “bancarização”, as autoras inferem que solicitantes de refúgio no Brasil estão numa espécie de “‘limbo jurídico’, ou seja, sem a proteção do seu Estado de origem e sem a proteção do Estado”.

Paula Campos Andrade, Gustavo da Silva Machado e Marcela de Andrade Gomes a partir de experiências clínicas refletem sobre a racialização de migrantes e refugiados no Brasil, destacando, de forma específica, o tema da escuta psicológica como ferramenta decolonial de acolhimento e inclusão cidadã. Conforme os/as autores/as “escutamos condições de vida quando co-criamos possibilidades de continuidades materiais e subjetivas no país de acolhimento”.

Ana Paula Risson e Carmen Leontina Ojeda Ocampo Moré se debruçam sobre o projeto migratório de mulheres haitianas residentes no Brasil, focando especificamente a motivação da emigração e os desafios da primeira inserção no território de chegada. O artigo sublinha a necessidade de evitar generalizações e destaca a família como elemento epistêmico central para a compreensão dos fluxos haitianos.

Desde uma abordagem jurídica, focando a perspectiva interseccional e dos direitos humanos, Andrea Carolina Subía Cabrera reflete sobre as políticas de controle migratório e integração de migrantes em Equador. A autora sublinha a vulnerabilização das pessoas migrantes e aponta a insuficiência das respostas estatais em termos de acolhida e integração, sobretudo dos grupos mais vulneráveis.

No artigo final, Nicolas Parent, Stacey Wilson-Forsberg e Abderrahman Beggar abordam e comparam duas áreas consideradas de “trânsito” de migrantes, o Estado de Chapas, no sul do México, e as Ilhas Canárias. Os autores dialogam com a literatura acadêmica disponível e problematizam algumas abordagens e lacunas, como, por exemplo, a “essencialização” da identidade pessoa migrante, a invisibilização de determinados “fluxos” e das resistências locais.

A resenha de Barbara Marciano Marques sobre o livro “Sociologia da imigração no Brasil, 1940-1970: A contribuição dos clássicos”, de Márcio de Oliveira, encerra o número da revista.

Desejamos uma boa leitura a todas e todos!

Referências bibliográficas

  • BAUMAN, Zygmunt; MAY, Tim. Aprendendo a pensar com a sociologia Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
  • BHABHA, Homi K. O Local da Cultura Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
  • DE GENOVA, Nicholas. Migrant “illagality” and deportability in everyday life. Annu. Rev. Anthropol., n. 31, p. 419-447, 2002.
  • FASSIN, Didier. Ragione umanitaria. Una storia morale del presente Roma: DeriveApprodi, 2019.
  • FOUCHER, Michel. Obsessão por fronteiras São Paulo: Radical Livros, 2009.
  • FREIRE, Paulo. A pedagogia do oprimido Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
  • FREITAG, Barbara. Escola, Estado & Sociedade São Paulo: Moraes, 1980.
  • MEZZADRA, Sandro. Multiplicação das fronteiras e das práticas de mobilidade. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 23, n. 44, p. 11-30, 2015.
  • NUSSBAUM, Martha. Non per profitto. Perché le democrazie hanno bisogno della cultura umanistica Bologna: Il Mulino, 2014.
  • TODOROV, Tzvetan. A conquista da América São Paulo: Martins Fontes, 1982.
  • ZANFRINI, Laura. Sociologia delle migrazioni Bari: Laterza, 2007.
  • 1
    Cabe lembrar que a necessidade de mão de obra qualificada é acompanhada, não raramente, pelo interesse em ter também mão de obra subalterna e submissa.
  • 2
    Ainda que louváveis e às vezes eficazes, essas iniciativas de indivíduos ou grupos da sociedade civil não podem e não conseguem suprir plenamente as responsabilidades dos estados. Neste sentido, entendo que a sociedade civil organizada e os próprios coletivos migrantes devem priorizar ações que visem mudanças legislativas e políticas públicas transformadoras, inclusive mediante um trabalho de base para oferecer narrativas alternativas sobre migrações e mobilidade e, desta maneira, desnaturalizar as abordagens nacionalistas e etnocêntricas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023
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